A Alquimia do filme “Uma História Sem Fim”

Uma História Sem Fim é um filme incrível para aqueles que, assim como eu, assistiram na infância. O filme com sua temática fantástica é um prato cheio para o movimento cinematográfico dos anos 80 que conta com várias outras obras incríveis. Mas, história de crianças à parte, poucos sabem que nesse conto há vários elementos que não são explorados no filme e remetem a ensinamentos ocultos e antigos.

Logo no início do filme observamos o início da jornada de Bastian para a vida adulta. Seu pai tenta o enquadrar em uma realidade sem graça onde os sonhos devem ser colocados de lado, iniciando o processo de desintegração da sua infância. Aqui também observamos o início da Jornada do Herói, onde após ser intimidado pelos vilões da escola, Bastian entra em uma velha livraria, encontrando um homem que vai o ajudar a cruzar o portal para sua grande aventura.

O velho tem semelhanças com o arquétipo do Mago que é aquele que orienta e instrui na maior parte das vezes sem influenciar diretamente. O cruzamento do portal depende apenas daquele que o faz, sendo papel do Mago guiar e orientar esse processo, assim como em muitos mitos e processos iniciáticos. Alguns exemplos aqui em outras histórias são: Merlin, Gandalf, São João Batista, Morfeus, Dumbledore, Yoda, entre outros.

Um outro ponto interessante aqui para se notar é o “roubo” do livro da História sem Fim por Bastian para começar a história. O menino é testado pelo livreiro para ver se realmente tem o espírito certo para continuar a jornada, mostrando que só aqueles que tem a coragem podem cruzar o primeiro portal.

O livro da História Sem Fim, com o Auryn, amuleto do herói Atreyu, similar ao Ouroboros.

Após isso, a história começa em um ambiente bastante interessante com as criaturas míticas de Fantasia. Essas criaturas são divididas em quatro tipos: terra, ar, fogo e água, bem como em quatro pontos cardeais diferentes. Essa analogia conversa com a simbologia do quatro como numero terreno, representante do corpo, mundo e da matéria física. Esse mundo, como os próprios personagens citam está se desfazendo para dar lugar ao “Nada”. Há também uma semelhança com os quatro elementos alquímicos chave para a transformação pessoal conforme veremos em breve.

Os quatro elementos na Alquimia

O “Nada” aqui pode ser visto como o simples processo de perda da criatividade e do estado de puro potencial da infância. A destruição gradual de Fantasia é provocada pela implantação das ideias de realismo e materialismo de seu Pai, e dos problemas da fase adulta por meio das agressões e intimidações dos outros que provocam um estado de defensividade e sobrevivência. Esse é o grande antagonista da história: nada mais do que a versão esvaziada do próprio protagonista.

Em seguida, somos apresentados ao herói Atreyu, a versão espelhada de Bastian: um menino corajoso e determinado que se habilita a salvar Fantasia. No início, outros personagens, também adultos riem dele e o desencorajam, assim como seu pai. Aqui, rapidamente podemos ver a primeira correspondência direta entre o mundo real e Fantasia por meio da máxima hermética “O que está Acima, está Abaixo” ou também “O que está Dentro, está Fora”. Veremos essa correspondência em vários outros pontos do filme.

Atreyu é o puro espírito personificado da conquista e da determinação infantil, mas, logo enfrenta os desafios do “Pântano da Tristeza” que é uma clara alegoria aos estados de espírito causados pelos problemas e crenças limitantes do crescimento. Aqui, podemos ver o início da jornada alquímica do protagonista: o Nigredo. O Nigredo é um momento que também se assemelha à “Noite escura da alma”, ou o sacrifício que precisa ser feito para purificar e ascender.

A jornada alquímica (Nigredo, Albedo, Citrinitas e Rubedo)

O Nigredo de Atreyu fica por conta da perda do cavalo Artax, seu melhor amigo, que o levava para todos os maravilhosos locais de Fantasia. Artax também é a alegoria da pureza, liberdade e pura potencialidade infantil. Esse também é o momento mais triste da jornada, onde desesperançoso, o herói encontra a grande tartaruga anciã Morla que personifica a preguiça, a falta de vontade e a morte dos desejos na fase adulta. Interessante notar que ela também é “alérgica” à juventude, já que o pequeno herói personifica a energia e o puro potencial, exatamente o inverso dela.

Morla convence Atreyu sobre a impossibilidade de salvar Fantasia pela grande distância que o menino está de chegar à Torre da Imperatriz. Com isso, a vontade do herói é completamente dominada pelas crenças limitantes e impossibilidades impostas, (semelhantes às do Pai no começo do filme), e ele se põe a morrer no pântano. Quando ele está prestes a definhar e ser engolido pelo misterioso lobo das trevas Gmork, Atreyu é salvo pela Grande Serpente Plumada, Falkor.

O paralelo de Falkor com os Serafins (“Saraph” significa Serpente Voadora ou Dragão de Fogo) é bastante marcante. Os Serafins são entidades purificadoras de grande poder, segundo muitas referências místicas, incluindo a própria bíblia.

“Porém um dos serafins voou para mim, trazendo na sua mão uma brasa viva, que tirara do altar com um tenaz; E com a brasa tocou a minha boca, e disse: Eis que isto tocou os teus lábios; e a tua iniquidade foi tirada, e expiado o teu pecado.” - Isaías 6:6,7

Isaías e o Serafim

O grande pecado de Atreyu a ser purificado é a própria dúvida, e a incerteza em seguir o caminho da virtude. O “Shaitan” (Satan), ou separação, é o que faz largar o real potencial e levar uma vida errante.

Esse seria o momento chave da salvação de Atreyu por meio do “Eu Superior” que o cura de seus ferimentos e fadiga e o carrega até próximo do seu destino. Mais uma vez fica claro que não é esse “Eu Superior” que fará o trabalho por Atreyu, mas o ajudará a chegar até a porta de mais um nível do templo que ele terá que cruzar. A noite escura da alma termina aqui, e dá-se início ao próximo nível alquímico: O Albedo.

O Albedo é o processo de purificação em si. É o Renascimento, assim como na própria história de Cristo. Tudo aquilo que é pesado e não serve mais vai embora e a consciência se expande para longe daquilo que contaminava. Mas, ainda há um processo a se efetuar para a transformação efetiva do ser, e do chumbo em ouro, que é a parte do eu interior, ou das emoções.

Aqui é interessante ver uma parte literal da Alquimia no filme, por meio dos gnomos mágicos que oferecem poções e conhecimentos para Atreyu. Eles são os Magos arquétipos da nova fase alquímica, onde, mais uma vez, deixam o jovem de frente para o próximo portão: o desafio das esfinges.

Atreyu é orientado que apenas aquele que tem um coração puro e sincero pode passar. Ele assiste de longe um cavaleiro em sua armadura brilhante ser fulminado pelas esfinges gêmeas. Essa passagem tem uma similaridade inquestionável com o mito de Ma’at descrito no Livro dos Mortos do Egito Antigo: Após a morte do corpo, o coração do falecido era colocado em um dos lados de uma balança e no outro era colocada uma pena, símbolo de Ma'at. Apenas se o coração do indivíduo não pesasse mais que a pena, ele era considerado digno de passar, ou ir para o Paraíso.

Cena do julgamento do Livro dos Mortos do Antigo Egito

Neste caso, mesmo com seus medos, Atreyu consegue passar pelas esfinges, vencendo o Passado, por meio de seu coração puro e iniciando sua caminhada para Citrinitas, ou o próximo nível do templo. A fase de Citrinitas é o início da caminhada para o despertar de acordo com a Alquimia e da transmutação para o ouro.

“Conhece-te a ti mesmo” - Templo de Delfos

O próximo desafio do Herói é o Espelho Mágico que reflete quem realmente ele é. Segundo o Gnomo, aqui é onde ele vai enfrentar o maior desafio dentro de si mesmo. A automaestria e autoconhecimento só pode ser alcançado através de um exame cuidadoso de si mesmo. É olhando para a sua sombra, ou seu lado negro é que fica claro os maiores obstáculos a serem vencidos. Pessoas amáveis podem ser muito cruéis, e pessoas fortes e corajosas podem ser covardes e fracas.

Atreyu encontra pela primeira vez Bastian, sua contrapartida. Atreyu é valente e resiliente. Bastian é um garoto débil e covarde. Mas, pela própria alegoria do espelho, eles são uma coisa só. Bastian se convence de que não há o “outro lado” quando ele pode ser visto e sentido em Fantasia. Vencendo o Presente, os opostos se unem para avançar por mais um portão do templo.

Aqui o processo de destruição de Fantasia já está bastante avançado, e o menino descobre que precisa dar um “nome” à imperatriz criança para salvar o mundo. Esse ponto é bastante enigmático, mas nomear algo é reconhecer que de fato esse algo exista, sendo uma alegoria para o reconhecimento do controle e consciência suprema de Bastian e Atreyu sobre as adversidades dos mundos real e da imaginação.

O herói voa até o Mar das Possibilidades, representando a infinidade da criação mental e do puro potencial, mas, nele Atreyu cai e se perde de seu “Eu Superior” o dragão Falkor, onde encara um dos seus últimos desafios em uma caverna com o Lobo Gmork. O cenário onde se desenrola o diálogo de Atreyu e Gmork é bastante semelhante ao Salão dos Registros, ou Registros Akáshicos, onde todas as coisas “são”. Tudo que já foi, é, e será está representado nas paredes, em forma de história, ou aguardando serem manifestas.

Gmork, o lobo que quase devora o herói anteriormente, é o lado negro que personifica o Nada. Ele representa a descaracterização, a ausência de desejo, vontade e criatividade. Gmork pode ser interpretado inclusive como a própria personificação do medo futuro e da sombra de Atreyu. Ele também pode ser visto como o futuro das trevas do Herói, caso o Nada vença Fantasia. Aqui, em uma alegoria da vitória da fé e esperança sobre o medo do futuro, o menino consegue ferir de morte o lobo e partir para o encontro final com a Imperatriz.

No desafio final, Atreyu e a Imperatriz chegam à conclusão de que é muito simples impedir a destruição total de Fantasia, mas tudo depende de Bastian. Bastian ainda é a sombra de Atreyu, débil, sem coragem, e com a maior das crenças limitantes. A imperatriz fala diretamente ao menino: “Por que você não faz o que você sonha, Bastian?” e ele responde: “que ele deve manter seus pés no chão”.

Convencido pela menina após ela dizer para ele chama-la pelo nome, Bastian finalmente vence a barreira final e ascende gritando o seu nome: “Moonchild” ou “Criança da Lua”. Esse trecho também abre várias interpretações, mas uma que é bastante razoável é que finalmente é feito o casamento alquímico entre os opostos aqui. Bastian é o sol, a menina é a lua. Razão e Emoção. Matéria e Mente. Tudo é unificado para finalmente atingir-se o Rubedo, ou a transcendência. “No início, tudo é escuro”, mas em um “grão de areia pode-se conter o próprio universo”.

"Alchemical Wedding, The Sacred Marriage" by Emily Balivet

Assim, começa a jornada de Bastian como alquimista do próprio destino como se vê nas cenas seguintes.

“To see a World in a Grain of Sand / And a Heaven in a Wild Flower / Hold Infinity in the palm of your hand / And Eternity in an hour” - William Blake in "Auguries of Innocence" of the: "Songs and Ballads"


É nítido que A História Sem Fim é um filme com bastantes referências controversas que vão muito além de um simples filme de fantasia infantil. Quem conhece algumas leituras e mitos com certeza vai achar muitas outras referências que não cobrimos aqui no tempo e espaço limitado desse vídeo. Para quem leu o livro, é ainda mais nítida a riqueza de referências sobre hermetismo, alquimia e psique.

E você? Viu o filme? Qual a sua interpretação? Vejo você no próximo nível!